quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Sabores do Barrocal Algarvio

Inverno.
Chove em Lisboa nos últimos dias. 
Encaminhamo-nos para paragens mais meridionais e a pluviosidade faz uma pausa.
À nossa espera está um fim‑de‑semana que mais parece Primavera. Isso enquanto é dia. Já à noite está frio e escuro. Bem escuro. Porque a lua apenas sorri para nós, com um traço fino. Está lua nova.
No meio da escuridão e do silêncio da noite, enquanto nos dirigimos para uma das - antecipo já com esta distância - refeições do ano, a Niebla, cadela branquinha, surpreende-nos e assusta-nos com o seu porte e ladrar.
Estamos numa aldeia do sotavento e barrocal Algarvio.
De dia percepcionamos a paisagem, a qual está linda. A natureza começa a ganhar novamente vida. A florescer.
Quando passamos pelas alfarrobeiras já cheira à fragrância da alfarroba. 


A amendoeira começa a estar em flor. 


As laranjeiras estão no tempo delas, pelo que carregadas da sua fruta. 


As figueiras, nespereiras e abricoteiras estão por ali, mas ainda não dão sinais. O seu tempo é mais lá à frente, quando o calor, enfim, chegar.
Deambulamos por terras do barrocal, essa área de transição entre a costa e a serra algarvia. Chegamos mesmo à fronteira com a região da serra, onde o xisto, aqui chamado talisca, aflora.
Absorvemos a beleza e calmitude da paisagem. Subimos a um dos pontos mais altos e avistamos a massa branca de Ayamonte, a foz do Guadiana, Vila Real de Santo António, a arquitectura bruta de Montegordo, o prédio alto de Altura. 
Continuamos a deambular. O Piri, cãozinho doçura, acompanha-nos estoicamente em toda a jornada. 
Cruzamo-nos com o senhor que produz mel. Queixa-se que mais um ano sem chover não é bom para a produção do mel. As abelhas andam por ali. Com toda a calma, como o senhor que lhes extrai o mel.
Cruzamo-nos com malvas, acelgas, cardos, aqui chamadas alcachofras selvagens, tomilho, poejo, este à beira da lagoa. E muitas mais ervas. À maioria das quais não damos importância.
Vamos dar importância à mesa, quando nos surpreendemos com uma cozinha da terra. Feita com o que a terra dá no momento e por quem conhece muito bem a terra e a cultura local.
Fazemos duas refeições caseiras memoráveis. As tais que, ainda que nos primeiros dias do ano, têm já entrada directa no top anual.
Um jantar e um almoço, em que nos acolhem amigável e gentilmente numa casa oitocentista. O ambiente surpreende. Tudo nos remete para o passado. Desde já a forma como a comida se mantém aquecida, através do aproveitamento do calor da lareira. Mas é no presente que estamos e que aproveitamos esta experiência.
A mesa está linda. Ainda pouco absorvemos do ambiente e, a partir de um tacho antigo, é-nos servida uma sopa de urtigas com gengibre e molho de soja. Pára tudo. Que magia. Parece que a poção mágica nos foi servida. Uma delicia. Indescritível. Algo de novo nos acontece. Por todos os preceitos, conversas e ensinamentos que recebemos. Fala-se de história, geografia e cultura, tudo associado à gastronomia. Riqueza profunda.
Ao centro da mesa estão azeitonas de sal (técnica especial que aproveita as azeitonas apanhadas já maduras), tremoços e figos secos, estes últimos para a sobremesa. Tanto ao jantar como ao almoço.
De seguida passamos para uma massa com acelgas. 
Tudo tão diferente, simples e saboroso. A responsabilidade é dos temperos utilizados, nomeadamente a gordura dos ossos do borrego e a banha do porco, os quais se alimentam de bolotas. Faz toda a diferença. 
De sobremesa, os tais figos deliciosos e fruta da época. Laranjas, tangerinas e maçãs.
Ao almoço do dia seguinte, já com a luz do dia a entrar pela casa, perscrutamos melhor todo o espaço. Parece que estamos noutro tempo histórico. Porém, sabemos que é no presente que estamos, ainda que vivido a um ritmo e de um modo de outros tempos. 
Por ser nova esta experiência, tem um grande impacto em nós.


A mesa está lindíssima. À nossa espera está um tomate com atum fumado, temperado com azeite, tomilho e gengibre. Não há palavras para descrever. Tudo é óptimo. O tomate sabe a tomate, os temperos dão dimensão, a conjugação de sabores é perfeita. Limpamos o azeite com pão de São Pedro de Solis.
O momento seguinte é feijoada de cales de cardo. Isso mesmo. O que a natureza dá lá fora é aproveitado entre portas. Na véspera foram as urtigas e as acelgas. Naquele momento são os cales da alcachofra selvagem.
Uma maravilha. Inusitado e reconfortante.
A encerrar a refeição figos secos, tangerinas e laranjas.
Confirmamos que a simplicidade e a vida, tal como ela é, têm um sabor especial.