Olhamos para a ementa
e cruzamo-nos com a palavra “caldo verde”. Confirmamos. Caldo verde. Mais
outras comidas familiares.
Lá fora está um clima
tropical. Aquele calor, acompanhado de humidade, que cola a roupa ao corpo.
Temos aquela sensação quente que, apesar de desconfortável, deixa-nos felizes.
Para além de caldo, a
presença do verde, em forma de coqueiros não deixa dúvidas, estamos nos
trópicos. Não em Portugal. Embora Portugal já tenha estado naqueles trópicos.
Durante séculos. Vários.
Lá fora e lá dentro,
do restaurante, é Goa. Não a Goa do tempo que Portugal era do Minho a Timor.
Não a Goa de um dos 451 anos, entre 1510 e 1961, em que os portugueses
governaram a região, mas antes a Goa do mais pequeno Estado Indiano num dia do
início da Primavera de 2016.
É emocionante estar
ali. Naquele sítio com uma história improvável, que no entanto perdurou durante
longos quatro séculos e meio e cuja herança ainda hoje ali persiste.
Não há como não nos
surpreendermos e comovermos com a influência portuguesa. Dos topónimos à
arquitectura, passando pela gastronomia e religião.
Não nos iludamos, o
paradigma global não é uma característica contemporânea. Lá longe, no tempo e
no espaço, os nossos antepassados traçaram os primeiros passos da globalização.
Levaram produtos de umas coordenadas geográficas para outras. Cruzaram
influências e miscigenaram culturas. De tal modo que o que hoje damos como
originário de uma determinada geografia nem sempre o foi.
Durante a governação
portuguesa na região fomos levando ingredientes até então estranhos, e
actualmente fortemente presentes, como o tomate, caju, batata, beringela,
abacaxi, mamão, goiaba e coentro. Muitos deles fizeram o trajecto do Brasil
para Goa, mas o percurso inverso também aconteceu com, por exemplo, a manga,
fruta nacional da Índia.
Alguns dos alimentos,
como os tomates e as batatas, até recentemente não eram aceites pelos Hindus.
Contudo, a mais
significativa introdução culinária efectuada pelos portugueses foi a malagueta,
originária das Américas mas que se propagou intensamente e revolucionou toda a
cozinha indiana.
Não deixa de ser
curiosa esta introdução fulcral na terra das especiarias. Inclusivamente sempre
foram as especiarias e a religião os maiores interesses dos portugueses na
Índia. Comercializar as primeiras, as quais à época eram mais valiosas que o
ouro, e propagar o catolicismo.
A religião sempre
influenciou a forma como se come. Os portugueses quiseram que os indianos
aceitassem a sua cozinha. Apesar de não ter sido fácil, conseguiram. A cozinha
goesa absorveu assim a influência portuguesa, nomeadamente ao nível dos
ingredientes. Foi introduzida a carne de vaca e porco, consideradas impuras e
tabus entre os hindus goeses.
Inúmeros pratos
goeses são à base de porco.
O chouriço goês é um
exemplo. Picante, como todos os outros pratos goeses, comemos assado no
restaurante Ferradura (Horse Shoe), à beira do rio Ourém,
no pão - o clássico goês pão com chouriço - no George, no
sopé da igreja de Panjim,
e no pulao de ervilhas e chouriço, no Venite,
implantado numa casa de traça colonial, no bairro de S.
Tomé em Panjim.
O sarapatel feito com o sangue do porco, as suas miudezas e temperado com malagueta, cravinho, açafrão, canela, coentros, cominhos, gengibre, alho, tamarindo e vinagre, é outro exemplo de um prato de porco. Adoramos esta iguaria goesa e regozijámos a saboreá-la no Viva Panjim, nas Fontainhas.
Enquanto adiávamos a experiência do vindaloo de
porco, culpa dos locais que nos foram atemorizando com os níveis de picante, saboreamos
no Ferradura um porco em vinha d’alhos ao estilo português.
Quando a coragem
não fugiu atacámos e sobrevivemos com distinção ao vindaloo de porco do
Verandah, nas Fontainhas.
A designação vindaloo resulta da contracção da
expressão vinha d'alhos, tempero levado pelos marinheiros portugueses na época
dos descobrimentos e posteriormente adaptado ao gosto local, que o complementou
com malagueta, vinagre (ingrediente usado em muitos outros pratos goeses) e diversas
especiarias.
Onde a herança portuguesa é nitidamente evidente é
no pão. O pão goês não tem qualquer semelhança com o nan ou o roti, pães tipicamente indianos. É antes
irmão gémeo do pão português.
No George fomos ao céu com a língua de vaca e regressámos à
terra para continuarmos a deliciar-nos com outras iguarias, como o magnífico
pulao, caril de frango e cafreal de frango, que também experimentámos no
Venite.
Cafreal de frango, pão goês, pulao, caril de frango e língua de vaca (por ordem dos ponteiros do relógio)
Cafreal de frango do Venite
Supõe-se que o cafreal teve origem em Moçambique e que
deriva do frango piri-piri. Pode ser de carne, peixe ou vegetais e é feito com uma
masala - termo usado na culinária indiana para descrever a mistura de duas ou
mais ervas ou especiarias - de coentro, cebola, alho, gengibre, canela,
malagueta, pimenta, noz-moscada, cravo-da-índia moído e..., ufa, sumo de lima.
Comer pratos destes é mergulhar literalmente num caldeirão cultural e ter uma
explosão de sensações.
Outro prato tradicional da culinária
indo-portuguesa de Goa (e também de Diu e Damão) é o balchão, confeccionado com balichão, um
condimento oriundo da culinária de Macau. Devorámos um de camarão no
Ferradura e no Verandah.
O xacuti é mais outro prato da culinária
indo-portuguesa. É frequentemente confeccionado com carne de frango, cabrito
ou bovino, podendo também ser preparado com peixe. Inclui uma grande variedade de ingredientes, tais como
coco, açafrão, cominhos, cravinho, gengibre, pimentão, canela, miolo de
amêndoa, alho, pimenta preta, malaguetas, coentros, mostarda em grão, caldo de
carne, vinagre e sal.
Comemos o xacuti de frango do Viva Panjim e do
Ferradura. Mais uma vez, a intensidade de sabor é enorme e todo o sistema
sensorial é desperto.
Também de influência portuguesa deliciámo-nos com
um xec xec de caranguejo no Viva Panjim.
O prato menos picante que degustámos foi os filetes de tubarão com molho de pimenta de limão.
No capítulo da doçaria há igualmente uma grande
influência lusa. A sobremesa goesa mais famosa é a bebinca, que experimentámos
por diversas vezes e não encontrámos uma igual. Talvez a melhor tenha sido a do
Viva Panjim.
Esta sobremesa de sete camadas é elaborada com
numerosas gemas de ovo, açúcar, cardamomo, leite de coco, farinha e manteiga.
Às nossas bocas foram também parar, advertidamente, a outros doces familiares, como o Bolo Sem Rival (de caju), a serradura e pudim
de ovos.
As sobremesas ajudam a apaziguar a louca e intensa, ainda que também muito deliciosa, viagem pelos sabores goeses. Pois, apesar da herança portuguesa, a característica maior
da cozinha goesa, e indiana em geral, é ser intensamente condimentada e picante, o
que para um paladar ocidental é um constante desafio.
Mas não é de desafios que é feita a vida?
Que seja repleta de desafios tão deliciosos como estes.