Junto às montanhas. Próximo de onde o Rio Soča serpenteia a sua impressionante transparência azul. Ali,
onde a frente italiana usou, contra os adversários, ferozmente as armas
na Primeira Grande Guerra Mundial. Onde Ernest Hemingway escreveu sobre isso, no seu
"Adeus às Armas".
Foi no
nordoeste da Eslovénia, próximo de Kobarid, num quarto de uma casa cor
de rosa que se diz que Hemingway criou uma das suas obras literárias.
Actualmente, os
tempos, felizmente, são outros. Por ali reina a paz e a natureza
mostra-se no seu esplendor. E na dita casa rosa é desenvolvida, com
arte, uma gastronomia de dedicação à natureza. Essa casa chama-se Hiša Franko e é propriedade de Ana Roš e Valter Kramar.Ana Roš é chef. Na verdade é a melhor chef mulher de 2017. Foi eleita World's Best Female Chef 2017 pelo World's 50 Best Restaurants
Valter é o homem do vinho. É ele que trata da garrafeira.
Na casa de ambos há uma filosofia. Território e estações, o que equivale a produtos locais. É disso e do carácter de Ana Roš que se faz a identidade do Hiša Franko, um restaurante com ambiente acolhedor e familiar.
Durante dias embrenhámo-nos
na natureza e sentimos o seu pulsar. Primeiro fisicamente, a subirmos
montes, a descermos outros, a serpentearmos rios, a entramos por vales
encaixados, a cruzarmo-nos com quedas de água. Depois emocionalmente,
através dos sabores dos produtos autóctones dos lugares que
palmilhámos.
Alguns dos quais não gosto, mas aos quais de certa forma me predispus. Quando vi, antes de saber que ali iria, o programa Chef's Table da Netflix dedicado a Ana Roš percebi que o queijo por ali é rei. Apesar da advertência para não constar nos pratos apresentados, este ingrediente foi omnipresente e fez-se representar.
Foi
com o dito, de Tolmic e em formato lolipop, que se iniciou a refeição. Este
ex-libris de Ana foi ainda coadjuvado por uma manteiga local, e por três snacks, um de
espargos brancos e toranja rosa, outro de pão fermentado com casca de maçã e ainda outro com a planta dente de leão frita.
Passada a fase inicial dos snacks, escolhido o vinho, da região vinícola de excelência do vale de Vipava, fomos para o primeiro dos pratos do menu que escolhemos (seis pratos).
A delicadeza chegou à mesa. Sob a forma de truta marmoreada, ervilhas, amêndoas cruas, morangos, amendoim.
Do delicado fizemos uma inversão para o intenso. Espargos
verdes, gema de ovo marinada em abeto, mexilhão »prosciutto«. Não fosse
a espuma de queijo a invadir os restantes sabores estaria perfeito para
o meu paladar.
O prato seguinte apresentou-se pleno de personalidade. Ravioli de couveflor, caldo de cabrito de »Drežnica«, miolos, feijão preto e Gotas de anchova, grenkuljica (erva amarga selvagem). Forte e irreverente.
Mais uma vez, o queijo contaminou, mas não abalou este grande prato, o qual foi eleito o meu favorito.
A equilibrar a intempestividade que se instalou, foi apresentado algo mais calmo. Artic Char (peixe que apresenta características do salmão e da truta), knotweed (planta japonesa de apecto parecido com o bambu), agrião, soro de queijo coalhado, trigo mourisco.
A
seguir, a substituir o "lamb" (outro ingrediente que não é do meu
agrado), prato original do menu, solha da Lagoa, ostras, salada de
limão, espinafre, infusão de limão kaffir. Havia ali também algo da
família do queijo...Não fosse isso, estaria mais perfeito.
Por
fim, a substituir também a sobremesa original do menu, de base lácteo (o que mais!), laranja sangue, chá preto, granola, gelado de cenoura e
mousse de amêndoa salgada.
Óptimo remate final, antes do fecho com pequenas delicadezas doces.
Como balanço, foi uma refeição de grande nível, porém para mim é difícil render-me por completo, pois a cozinha do Hiša Franko faz-se muito dos únicos ingredientes que assumo que não gosto (chego mesmo a não tolerar gustativamente), o queijo e a carne da família do cabrito e do carneiro.
Ainda assim, foi uma óptima experiência, tanto mais que pernoitámos na casa e depois da fausta refeição foi só subirmos ao andar de cima, onde dormimos sem ser necessário contar carneirinhos eslovenos.